- Bem aventurados os pobres de espírito
porque deles é o Reino dos céus-
Mateus 5. 3
Seus dois olhos brilharam com um brilho ainda incerto para mim, porém,
com suspeitas de haver ali certa ingenuidade, me permiti estar à mercê de qualquer
coisa que poderia vir, talvez uma “oração forte” pensei (algo muito corriqueiro),
mas não... Aquilo lhe saiu dos lábios com uma espontaneidade quase invasiva,
indiscreta. Olhos pequenos numa face miúda
me fitavam com segurança, assim como toda a sua expressão corporal que dizia a
mesma coisa. Cada gesto autenticava aquele vigor pronunciado, por irônico que
pareça ser, de pulmões frágeis sob um teto de telhas remendadas. As palavras
saíram como se lhe fosse um credo, sistematicamente elaborado e professado em
tom apostólico. Era possível, para alguém com boa imaginação, até ouvir os sons
característicos de uma teofania, relâmpagos e anjos dizendo amém. Aquele
momento reservou-me a participação numa cena extraordinária, cujo protagonista
brilhou tanto, que eu, por fim, nem fiz muito caso do papel figurante que desempenhei.
Suas palavras relampejaram com prerrogativas divinas. Foram construindo
ao poder de uma só voz, um universo muito bem organizado. Tudo estava ali no
lugar onde devia estar e com a riqueza de detalhes que só uma mente muito
determinada poderia prever. Uma BMW de repente surgiu no pipocar de uma frase,
com um adesivinho “Foi Deus que me deu”
ao lado do peixinho cristão (é claro!). Depois veio a casa de três pisos (com
piscina, área de lazer, churrasqueira, quadra de futebol, suítes, garagem pra
três carros, etc)... e assim por diante foram saltando para a existência uma
série de coisas. O intrigante é que este mundo presente na estrutura do seu
discurso não estava ali para ser experimentado realmente pelos sentidos, ou
melhor dizendo, o que o cercava por todos os lados era justamente um mundo
totalmente antagônico. A exemplo disso poderia se falar do casebre de madeira
desconjuntado pendendo para um lado sob nossas cabeças, no qual havia, sem
surpresa nenhuma, no pátio um fusca sendo montado com a lataria em cacos e precisando
refazer o motor. Mas isso não lhe tirava o brilho do rosto nem o seu ânimo
oscilava. No final só faltou dizer que tudo o quanto criou havia ficado muito
bom e regozijar-se consigo mesmo, a despeito do mundo real que não criara.
Com uma sensação de impotência senti calar dentro de mim, talvez o meu
impulso mais primitivo para aquela hora. Contive o desejo demasiado humano de
sair a passo e conformei-me: “Ora... afinal, nas conversações os ouvidos não
são mesmo órgãos seletivos como a boca que pode escolher o que dizer!” Sem voz
e sem ação segui ouvindo o que não queria. Minha capacidade de armazenamento de
dados (insolúveis) aos poucos foi se comprometendo, chegando ao ponto em que
não conseguia mais fazer a leitura de suas palavras, apenas de seus gestos,
que, até ali, continuavam a exprimir uma estranha e contraditória empolgação. Apesar
de tudo, eu estava ali, emocionalmente envolvido com cada vibração do meu
interlocutor. Sentia em mim a força e o atrito de suas palavras.
Naturalmente percebi que aquele jovem não se sentia perdido, com
dúvidas ou perguntas (acerca da vida eterna?). Como poderia? Não havia
hesitação em sua fala. Nem sequer um pedido de oração lhe cabia fazer. Sua
oratória era evangelística, profética. Poderia fazer sentir-me um pagão da
cabeça aos pés. - “Mas que ingenuidade a sua!” - afinal de contas, ele bem
poderia interpelar-me, por pensar este absurdo. E se assim ele o fizesse, o que
poderia dizer eu? A não ser reconhecer, ao menos pelo juízo estético da cena,
que eu estava mesmo diante de uma figura mais parecida com um mestre (no
conceito popular e cultural-religiosamente apreendido: um profeta pentecostal)?
Pronto! Estava resolutamente reconhecido, e por isso mesmo, não menos que uma
boa lição tirei de sua aula (é verdade!).
Todas aquelas proposições do seu credo ele demonstrava cumprir muito
bem, com ar de superioridade até, o que na verdade era também uma mensagem
implícita para mim, para que eu fosse como ele. E assim ia dizendo sem rodeios
após citar o exemplo de um fulano de tal que era pastor e andava de carro
importado na vila, o qual também deixou claro, ser um homem que acreditava no
Deus em que pregava:
- Deus é dono de todo ouro e toda prata. É só fazer um propósito com
ele e tu vai prosperar! Ele vai te honrar!
Síntese magnífica! Menos não
poderia se esperar de um coração tão sedento. Digna de um silogismo
aristotélico - agrada o raciocínio lógico - e o melhor de tudo, biblicamente fundamentada
- agrada também a piedade cristã!
Ainda absorto na megalomania daquele universo construído, tentei
ensaiar uma reação verbal e fugir para um terreno mental menos perigoso para o
bom senso. Sugeri um escape tentando tornar mais leve o nosso diálogo (que mais
parecia um monólogo). Coisa simples tentei, como perguntar: “e a família como
vai?” Porém, isso não lhe distraiu a mente nem conteve aquela vazão que
insistia e que qualquer hora iria transbordar-me a paciência. Trocou duas
palavras sobre o assunto e logo retomou o mesmo ímpeto. Por mais alguns minutos
continuou falando. Depois de ter tomado posse de muitos tesouros com o aval de
Deus, disse a ele que precisava ir andando, já estava tarde e tinha outro
compromisso dali a pouco. Ele lamentou termos que acabar a conversa, pois pelo
jeito, tinha outros “testemunhos” para dar (com certeza).
Antes de ir embora, disse-lhe que ainda faltava uma coisa para ele: Renunciar
toda a riqueza que o seu desejo cobiçoso havia ajuntado no coração e assim ele
teria um tesouro incorruptível nos céus. Ele olhou para mim e não arredou o pé,
não ficou triste, não baixou a vista nem perdeu o brilho do olhar - a partir
daí, reações que não me surpreendiam mais. Notei apenas uma leve alteração na
sua expressão. No canto da boca, crescendo deliberadamente sem timidez, um
risinho debochado com ar depreciativo. Não disse mais nada. Saí de sua casa
cabisbaixo, misturando dentro de mim os dois ingredientes (indigestos) daquela
tarde: tristeza e indignação. Ele ficou
lá com dois olhos luminosos sob um teto de sonhos, enquanto eu, à medida em que
me distanciava percorrendo o chão esburacado de sua rua, tinha o olhar
depressivo sentindo cair sobre mim uma terrível realidade. No caminho de volta
para casa me peguei pensando: “Que mundo louco é esse! Não é nem mais
‘privilégio’ somente dos ricos ter que passar um camelo pelo buraco de uma
agulha!”
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Texto: Thiago de Mattos
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