quinta-feira, 27 de março de 2014

O jovem pobre

- Bem aventurados os pobres de espírito 
porque deles é o Reino dos céus- 
Mateus 5. 3



Seus dois olhos brilharam com um brilho ainda incerto para mim, porém, com suspeitas de haver ali certa ingenuidade, me permiti estar à mercê de qualquer coisa que poderia vir, talvez uma “oração forte” pensei (algo muito corriqueiro), mas não... Aquilo lhe saiu dos lábios com uma espontaneidade quase invasiva, indiscreta.  Olhos pequenos numa face miúda me fitavam com segurança, assim como toda a sua expressão corporal que dizia a mesma coisa. Cada gesto autenticava aquele vigor pronunciado, por irônico que pareça ser, de pulmões frágeis sob um teto de telhas remendadas. As palavras saíram como se lhe fosse um credo, sistematicamente elaborado e professado em tom apostólico. Era possível, para alguém com boa imaginação, até ouvir os sons característicos de uma teofania, relâmpagos e anjos dizendo amém. Aquele momento reservou-me a participação numa cena extraordinária, cujo protagonista brilhou tanto, que eu, por fim, nem fiz muito caso do papel figurante que desempenhei.
Suas palavras relampejaram com prerrogativas divinas. Foram construindo ao poder de uma só voz, um universo muito bem organizado. Tudo estava ali no lugar onde devia estar e com a riqueza de detalhes que só uma mente muito determinada poderia prever. Uma BMW de repente surgiu no pipocar de uma frase, com um adesivinho “Foi Deus que me deu” ao lado do peixinho cristão (é claro!). Depois veio a casa de três pisos (com piscina, área de lazer, churrasqueira, quadra de futebol, suítes, garagem pra três carros, etc)... e assim por diante foram saltando para a existência uma série de coisas. O intrigante é que este mundo presente na estrutura do seu discurso não estava ali para ser experimentado realmente pelos sentidos, ou melhor dizendo, o que o cercava por todos os lados era justamente um mundo totalmente antagônico. A exemplo disso poderia se falar do casebre de madeira desconjuntado pendendo para um lado sob nossas cabeças, no qual havia, sem surpresa nenhuma, no pátio um fusca sendo montado com a lataria em cacos e precisando refazer o motor. Mas isso não lhe tirava o brilho do rosto nem o seu ânimo oscilava. No final só faltou dizer que tudo o quanto criou havia ficado muito bom e regozijar-se consigo mesmo, a despeito do mundo real que não criara.
Com uma sensação de impotência senti calar dentro de mim, talvez o meu impulso mais primitivo para aquela hora. Contive o desejo demasiado humano de sair a passo e conformei-me: “Ora... afinal, nas conversações os ouvidos não são mesmo órgãos seletivos como a boca que pode escolher o que dizer!” Sem voz e sem ação segui ouvindo o que não queria. Minha capacidade de armazenamento de dados (insolúveis) aos poucos foi se comprometendo, chegando ao ponto em que não conseguia mais fazer a leitura de suas palavras, apenas de seus gestos, que, até ali, continuavam a exprimir uma estranha e contraditória empolgação. Apesar de tudo, eu estava ali, emocionalmente envolvido com cada vibração do meu interlocutor. Sentia em mim a força e o atrito de suas palavras.
Naturalmente percebi que aquele jovem não se sentia perdido, com dúvidas ou perguntas (acerca da vida eterna?). Como poderia? Não havia hesitação em sua fala. Nem sequer um pedido de oração lhe cabia fazer. Sua oratória era evangelística, profética. Poderia fazer sentir-me um pagão da cabeça aos pés. - “Mas que ingenuidade a sua!” - afinal de contas, ele bem poderia interpelar-me, por pensar este absurdo. E se assim ele o fizesse, o que poderia dizer eu? A não ser reconhecer, ao menos pelo juízo estético da cena, que eu estava mesmo diante de uma figura mais parecida com um mestre (no conceito popular e cultural-religiosamente apreendido: um profeta pentecostal)? Pronto! Estava resolutamente reconhecido, e por isso mesmo, não menos que uma boa lição tirei de sua aula (é verdade!).
Todas aquelas proposições do seu credo ele demonstrava cumprir muito bem, com ar de superioridade até, o que na verdade era também uma mensagem implícita para mim, para que eu fosse como ele. E assim ia dizendo sem rodeios após citar o exemplo de um fulano de tal que era pastor e andava de carro importado na vila, o qual também deixou claro, ser um homem que acreditava no Deus em que pregava:
- Deus é dono de todo ouro e toda prata. É só fazer um propósito com ele e tu vai prosperar! Ele vai te honrar!
        Síntese magnífica! Menos não poderia se esperar de um coração tão sedento. Digna de um silogismo aristotélico - agrada o raciocínio lógico - e o melhor de tudo, biblicamente fundamentada - agrada também a piedade cristã!
Ainda absorto na megalomania daquele universo construído, tentei ensaiar uma reação verbal e fugir para um terreno mental menos perigoso para o bom senso. Sugeri um escape tentando tornar mais leve o nosso diálogo (que mais parecia um monólogo). Coisa simples tentei, como perguntar: “e a família como vai?” Porém, isso não lhe distraiu a mente nem conteve aquela vazão que insistia e que qualquer hora iria transbordar-me a paciência. Trocou duas palavras sobre o assunto e logo retomou o mesmo ímpeto. Por mais alguns minutos continuou falando. Depois de ter tomado posse de muitos tesouros com o aval de Deus, disse a ele que precisava ir andando, já estava tarde e tinha outro compromisso dali a pouco. Ele lamentou termos que acabar a conversa, pois pelo jeito, tinha outros “testemunhos” para dar (com certeza).

Antes de ir embora, disse-lhe que ainda faltava uma coisa para ele: Renunciar toda a riqueza que o seu desejo cobiçoso havia ajuntado no coração e assim ele teria um tesouro incorruptível nos céus. Ele olhou para mim e não arredou o pé, não ficou triste, não baixou a vista nem perdeu o brilho do olhar - a partir daí, reações que não me surpreendiam mais. Notei apenas uma leve alteração na sua expressão. No canto da boca, crescendo deliberadamente sem timidez, um risinho debochado com ar depreciativo. Não disse mais nada. Saí de sua casa cabisbaixo, misturando dentro de mim os dois ingredientes (indigestos) daquela tarde: tristeza e indignação.  Ele ficou lá com dois olhos luminosos sob um teto de sonhos, enquanto eu, à medida em que me distanciava percorrendo o chão esburacado de sua rua, tinha o olhar depressivo sentindo cair sobre mim uma terrível realidade. No caminho de volta para casa me peguei pensando: “Que mundo louco é esse! Não é nem mais ‘privilégio’ somente dos ricos ter que passar um camelo pelo buraco de uma agulha!”





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Texto: Thiago de Mattos

terça-feira, 18 de março de 2014

A rua dos buracos (poema 2)

II

Às margens da rua os esgotos nos reservam
de vez em quando certas surpresas
à céu aberto o que tem lá nem se esconde
tanto assim da nossa vista
tênis, cd, calota de carro, garrafa pet e celular
tudo muito misturado à rigor
para compor o cenário.

Mas pra surpresa de alguém...
parece que isto aqui ninguém pôs:
na beirada da valeta emergindo
timidamente um raminho de hortelã
a destoar da paisagem e do odor
Cresceu ali contrastado do meio
com fragrância e propriedades diferentes.

Lá pelas tantas depois de muito alarde
(afinal, convenhamos, foi um achado inusitado)
nem sabíamos mais se era mesmo hortelã
aquele raminho esperançoso
De qualquer forma bastou-nos
naquele momento estranho
nascer algo bonito dentro de nós mesmos.


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Poesia: Thiago de Mattos

quarta-feira, 12 de março de 2014

A rua dos buracos

I

Caminho pelas irregularidades e desníveis
do teu chão
contando os passos e os buracos pela rua
caminho perdendo as contas
e o pudor de te ver assim: tão nua,
dura realidade de solo batido!

Depois de algum tempo o olhar até se
                                     acostuma
e os pés no mesmo embalo despudorados
tocam e desviam tuas lacunas
Que fenômeno é esse que causas nos sentidos,
ó ruazinha de chão sofrido?

Abre olhos fecha olhos
passo a passo continua...



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poesia: Thiago de Mattos