Nós evangélicos protestantes tratamos com muita seriedade o valor da confissão de fé. Isso faz bastante sentido já que nossa igreja nasceu sobre um chão marcado pelos debates teológicos, concílios e formulações de confissões de fé. Olhando para mais longe, para a igreja antiga (os pais da igreja), vemos que essa preocupação com a articulação correta da fé não foi apenas privilégio dos reformadores. E olhando para mais longe ainda, podemos ver também este tipo de atitude até nos escritos dos apóstolos. Tudo isso reforça a nossa identidade construída historicamente como um povo que confessa o conteúdo de sua fé sistematicamente. A isso demos o nome de ortodoxia.
Agora vem a pergunta: Nós como protestantes não temos reproduzido este movimento todo em torno de nossa confissão de tal forma a negligenciarmos, em certa medida, o último ato deste mesmo movimento? De tal maneira que ele nunca chegue livremente ao seu objetivo, digo, às obras? Por que afinal de contas a fé sem obras é morta, diz a Bíblia, a despeito do nariz torto de Lutero para a carta de Tiago do Novo Testamento. Será que toda essa nossa articulação confessada não se tornou, historicamente, um movimento circular fechado em torno da fala, ao invés de ser um movimento espiralar que se expande, e na medida que cresce se transmuta da fala para ações práticas (da palavra para a carne)?
Essa ênfase na confissão verbalizada, articulada em artigos, pronunciada nos credos, não seria por assim dizer, um provocar-fazer reducionista da experiência da fé, e, por implicação, uma atitude de não integralidade em relação ao evangelho que ela proclama? Pois é verdade também que as boas obras da igreja (instituição) ao longo dos séculos talvez não fazem frente a todas as suas barbaridades. Somam-se, por exemplo, ao conteúdo herdado de nossa historicidade, inúmeras disputas ideológicas e políticas que, levadas a cabo, não tinham nada a ver com o objetivo final da fé, que são as boas obras. Pela dita confissão de fé vigente (seja apostólica romana ou reformada) praticou-se, como missão cristã, assassinatos, perseguições e violações de todas as leis que hoje nomeamos de humanitárias.
É claro que hoje não matamos mais ninguém em função da nossa fé-artigo (pelo menos não fisicamente). Mas continuamos enfatizando aquilo que os apóstolos, pais da igreja e reformadores fizeram questão de relacionar a fé: sua representação enquanto artigo teológico. E fazemos isso sem talvez irmos para um ponto mais originário ainda - a propósito o ponto primeiro... aliás, primeiro e último: Jesus Cristo. Porque se ater demasiadamente ao que se ramificou dele, sem se perguntar que o que mais interessava a ele era simplesmente amar concretamente as pessoas e salvá-las através deste amor? Para Jesus o importante era a articulação da práxis. Ele não perdeu tempo articulando o evangelho com outra coisa senão com a sua representatividade concreta e real na vida das pessoas.
Não estamos questionando aqui o valor histórico das confissões e credos, muito embora se pense que a tradição possa (e deva) nesse sentido, ser questionada, ainda mais se estiver em jogo a vivência da fé com mais sentido histórico para o hoje.
Entrementes, continua sendo mais importante para o protestante a ortodoxia do que a ortopraxia - pois a verdade do cristão repousa ortodoxamente e não ortopraxiamente - e, ao meu ver, aí reside um tema central da dificuldade de compreender e expandir o horizonte da reflexão e da prática acerca de missão integral.
(continua na próxima postagem sob novo título)
____________________________
Texto: Thiago de Mattos